Uma tarde de Domingo

Os seres humanos e a sua insatisfação são para lá de inconstantes. Se faz frio é um horror, se faz calor não se aguenta, se chove é uma chatice, se não chove é uma seca… No Domingo não choveu e após alguma reserva decidimos aproveitar a concessão do S. Pedro para irmos passear a pé, à beira-rio, no Parque das Nações, porque continua a ser uma zona aprazível para caminhadas e onde a fauna lisboeta pulula em toda a sua enorme diversidade. Aconteceu que, a meio do passeio num pequeno jardinzinho, vi, pela primeira vez na minha vida, um senhor barbudo de mini-saia e ataviado com bijuteria e maquilhagem, a passear duas crianças. Escusado será dizer que não havia passeante ou mero transeunte que não voltasse a cabeça, ou não sentisse os olhos magnetizados naquela direcção, como se fosse a primeira vez que se visse um homem de saias.   Há-os em vários países e ainda mais numerosas são as culturas em que os homens vestem saias e como tal não seria assombroso, não fora o preparo no seu todo fazer crer a quem olhava (porque toda a gente olhava) que fora concebido para chocar. Garantidamente sentia a convergência das miradas disfarçadas na pele nua das pernas, mas não parecia minimamente incomodado. As duas crianças e o senhor exprimiam-se em inglês e os pequenos tratavam-no por mammy, o que destoava bastante do retrato e expunha o senhor como artigo de importação, mas não ponho de parte tratar-se de produto nacional adaptado. Lia, olhava os petizes embevecido e eram um autêntico retrato de felicidade. Não me considero fundamentalista em questões de atribuição de sexo. Lidei toda a minha vida com pessoas que não se identificavam com o sexo com que nasceram. Algumas mais espalhafatosas do que outras, é certo, mas nunca me tinha acontecido dar de caras com alguém que tivesse feito esta escolha de vida socialmente tão vistosa. No final quedamo-nos nós, os passeantes e os que por ali passavam, a tentar identificar o(a) senhor(a) como masculino, feminino, diádico, intersexo ou altersexo, ou nenhum dos descritos, isto porque a as nossas crianças nos fazem perguntas enredadas em embaraço, e porque a imagem ficou tão fortemente marcada, que será seguramente difícil de apagar. A conclusão que posso tirar é que quem presenciou esta inocente ida ao jardim se sentiu mal por ele se sentir bem. Posso também rematar com a frase-bordão do Diácono Remédios, mas nem por isso me faz sentir melhor.   (Imagem gerada por IA, muito semelhante ao original)

Jan 14, 2025 - 10:53
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Uma tarde de Domingo

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Os seres humanos e a sua insatisfação são para lá de inconstantes. Se faz frio é um horror, se faz calor não se aguenta, se chove é uma chatice, se não chove é uma seca…

No Domingo não choveu e após alguma reserva decidimos aproveitar a concessão do S. Pedro para irmos passear a pé, à beira-rio, no Parque das Nações, porque continua a ser uma zona aprazível para caminhadas e onde a fauna lisboeta pulula em toda a sua enorme diversidade.

Aconteceu que, a meio do passeio num pequeno jardinzinho, vi, pela primeira vez na minha vida, um senhor barbudo de mini-saia e ataviado com bijuteria e maquilhagem, a passear duas crianças. Escusado será dizer que não havia passeante ou mero transeunte que não voltasse a cabeça, ou não sentisse os olhos magnetizados naquela direcção, como se fosse a primeira vez que se visse um homem de saias.  

Há-os em vários países e ainda mais numerosas são as culturas em que os homens vestem saias e como tal não seria assombroso, não fora o preparo no seu todo fazer crer a quem olhava (porque toda a gente olhava) que fora concebido para chocar. Garantidamente sentia a convergência das miradas disfarçadas na pele nua das pernas, mas não parecia minimamente incomodado. As duas crianças e o senhor exprimiam-se em inglês e os pequenos tratavam-no por mammy, o que destoava bastante do retrato e expunha o senhor como artigo de importação, mas não ponho de parte tratar-se de produto nacional adaptado. Lia, olhava os petizes embevecido e eram um autêntico retrato de felicidade.

Não me considero fundamentalista em questões de atribuição de sexo. Lidei toda a minha vida com pessoas que não se identificavam com o sexo com que nasceram. Algumas mais espalhafatosas do que outras, é certo, mas nunca me tinha acontecido dar de caras com alguém que tivesse feito esta escolha de vida socialmente tão vistosa.

No final quedamo-nos nós, os passeantes e os que por ali passavam, a tentar identificar o(a) senhor(a) como masculino, feminino, diádico, intersexo ou altersexo, ou nenhum dos descritos, isto porque a as nossas crianças nos fazem perguntas enredadas em embaraço, e porque a imagem ficou tão fortemente marcada, que será seguramente difícil de apagar. A conclusão que posso tirar é que quem presenciou esta inocente ida ao jardim se sentiu mal por ele se sentir bem. Posso também rematar com a frase-bordão do Diácono Remédios, mas nem por isso me faz sentir melhor.

 

(Imagem gerada por IA, muito semelhante ao original)

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