Tempo de tela, olhos nos olhos

Passei quase 11 horas do último domingo olhando para telas, sem contar a TV. Entre celular, tablet e computador, terminei o dia da semana tido como de descanso com os olhos cansados, o cérebro frito e um pouco frustrado. Culpa minha? Em parte, sim, mas não só.

Jan 23, 2025 - 13:22
 0
Tempo de tela, olhos nos olhos

Passei quase 11 horas do último domingo olhando para telas, sem contar a TV. Entre celular, tablet e computador, terminei o dia da semana tido como de descanso com os olhos cansados, o cérebro frito e um pouco frustrado.

Nem todas aquelas horas — um excesso mesmo para mim, que trabalho olhando para telas — foram de desperdício. Uns bons 40 minutos, por exemplo, passei falando com meus pais, por videochamada. É difícil pensar em usos melhores que esse para as telas que nos cercam.

O problema foram as outras 10 horas, ou a maior parte delas.

***

Há algum tempo percebi que o digital representa uma espécie de “refúgio”, um espaço onde consigo exercer minha quase-mania de controle — ou iludir-me com ele — sem quaisquer consequências relevantes.

Notei, também, que meu tempo de tela dispara quando estou meio deprimido.

Nessas fases, fico obcecado com dois temas quase supérfluos, aos quais dedico muitas horas de tela: futricar o leiaute deste site que você lê e confabular a troca de todos os softwares proprietários que uso por alternativas livres, como Linux no computador e um celular com Android “degoogled”1.

Meu domingo foi desperdiçado pesquisando computadores usados que poderia adotar no lugar do meu notebook, esse provavelmente o melhor computador que já tive e que me é difícil encontrar defeitos, apenas porque… sei lá.

***

Identificar tais sintomas e os gatilhos que desencadeiam as minhas crises foram passos importantes para aprender a lidar com a ressaca moral que me acomete depois que elas passam.

Eu posso me ajudar e, embora tenha implementado algumas medidas nesse sentido, sinto que é algo maior que eu, que qualquer indivíduo.

Quais medidas? Uma delas, das mais eficazes, é bloquear o acesso a redes sociais no nível da rede, com a ajuda do NextDNS2.

Mesmo as ditas mais saudáveis, como Mastodon e Bluesky, com o tempo viram destinos compulsivos, acessados no automático em momentos de espera, tédio, dificuldades das mais simples e, o que é pior, também quando deveria estar fazendo coisa mais importante ou agradável.

O atrito — de ter que abrir o painel do NextDNS, desmarcar os domínios bloqueados, desligar e religar a rede — é de grande ajuda ao autocontrole, servindo de contraponto à compulsão de acessar os buracos negros de tempo sem pensar, no piloto automático.

Bastam duas ou três vezes em que digito “mas”, “red” ou “bsk”, teclo Enter e dou com a cara numa tela de erro para eu desencanar. Como efeito colateral, acho que fico mais consciente do tempo que passo em frente às telas. Concentro-me melhor no que estou fazendo sem as distrações.

Mensagem de erro do Chromium dizendo que não foi possível abrir o site reddit.com, com efeitos de distorção.
Ilustração: Rodrigo Ghedin/Manual do Usuário.

Outra medida que tem me ajudado é engavetar o tablet, literalmente. O conforto da tela grande somado à conveniência de estar sempre à mão é uma combinação irresistível. Os textos longos, que costumava ler no tablet, tirei de lá. Hoje, imprimo e leio eles em papel.

Nada disso é uma solução definitiva, pois não é sustentável no longo prazo. Tenho recaídas e mesmo antes delas, mentiria se dissesse que o acesso a sites e apps viciantes não faz falta.

As redes que frequento — Mastodon, Bluesky (essa, menos), Reddit e Hacker News — têm uma boa relação sinal–ruído, ou seja, considero-as benéficas quando acessadas com parcimônia. Encontro coisas divertidas, interessantes, úteis; parte do que aparece no Manual ou me inspira a desenrolar alguns assuntos aqui vem desses lugares. Nesse sentido, o trabalho que desempenho é uma espécie de mineração digital, só que em vez da poeira tóxica destruir os meus pulmões, a da internet acaba com meus neurônios.

Ainda que úteis, seriam essenciais, no sentido de “não conseguiria viver sem”? Óbvio que não. O bloqueio do X no Brasil em 2024, de pouco mais de um mês, provou a muitos viciados que existe vida fora dali. Nos Estados Unidos, teve gente lamentando a curtíssima duração do bloqueio ao TikTok na véspera da posse de Donald Trump.

Na verdade, para muitos o bloqueio foi uma revelação seguida de um grande alívio. Abstinência e superação. Os paralelos com adições convencionais, como a em drogas, são chocantes.

***

Falou-se muito da convergência do celular moderno, que eliminou um punhado de bugigangas que a gente tinha e carregava por aí, por um retângulo de metal e vidro com possibilidades infinitas.

Embora seja parte do que talvez possamos chamar de problema, acho que o celular não é o único vilão, nem mesmo o principal.

Após muitas reflexões, textões lidos e sessões de terapia monotemáticas, tenho comigo que a raiz do excesso de tela está na escassez de olhos nos olhos. A tela, que aqui uso como palavra guarda-chuva para internet, não substituiu apenas bugigangas, mas também um monte de interações sociais, das frágeis/fracas às fortes.

Tenho plena consciência de que eu não me ajudo nesse sentido: sou introspectivo, fechado e displicente com o cultivo de relacionamentos, um caldeirão de traços e sentimentos que encontra conforto na luz azul da tela.

Só que o problema não é (só) eu. Às vezes tenho a impressão de que todo mundo está na mesma3.

Rosie Spinks foi quem melhor definiu esse… zeitgeist? Já posso para chamar assim? É culpa das telas, da internet, do capitalismo, do modo de vida que a minha geração criou (ou foi moldada a adotar), acrescente aí uma pandemia.

“Nossos cérebros não foram feitos para funcionar desse jeito”, escreve Rosie. “E aí, acho eu, está o ponto crucial do problema da amizade: estamos tão esgotados pelo processo de existir em um mundo globalizado e conectado que simplesmente não temos energia para os tipos de interações pessoais e fáceis que podem devolver um pouco de energia e força vital.”

Nada disso é novo, só parece estar piorando com o passar do tempo, com o dito “progresso” da tecnologia em nossas vidas. Como olhar menos para telas em um mundo em que tudo e todos investem tempo, dinheiro e lobby para nos manter grudados nelas, atomizados em nossas casas, juntos na mesma miséria, porém cada um na sua? Aceito sugestões.

  1. Esse último tema, aos não iniciados, é o equivalente digital de abandonar a vida moderna e ir viver no mato, do que a natureza dá. Pior que dá; conheço gente que conseguiu.
  2. Existem aplicativos que colocam uma tela antes de outros apps e sites viciantes, como se dissessem “tem certeza disso?”, que devem ter o mesmo efeito e são mais fáceis de usar.
  3. Isso, e que todo mundo toma pelo menos um remédio pra cabeça, mas essa é outra conversa, ainda que relacionada à que estamos tendo.

Fonte

Qual a Sua Reação?

like

dislike

love

funny

angry

sad

wow