Crítica | Anora (2024): quando a ilusão desmorona
Mikey Madison entrega um desempenho marcante em um filme que expõe, sem julgamentos, até onde somos capazes de ir para realizar nossos sonhos em um mundo de relações tão frágeis e desiguais. O post Crítica | Anora (2024): quando a ilusão desmorona apareceu primeiro em Cinema com Rapadura.
É possível que, ao começar “Anora”, muitos espectadores sejam levados a pensar que estão assistindo a uma comédia romântica moderna e voltada para adultos. A personagem-título, interpretada por Mikey Madison, se envolve em um relacionamento com Ivan (Mark Eydelshteyn), um jovem rico que se mostra ser a porta de saída de sua vida marginalizada em um clube de strip. O diretor Sean Baker (“Projeto Flórida”) dedica bastante tempo a essa primeira parte do filme com a intenção de criar um vínculo entre Ani (como a protagonista prefere ser chamada) e seu projeto de príncipe encantado.
Desde cedo, Ivan mostra traços de imaturidade e egoísmo que, de certa forma, prejudicam esse papel de herói romântico. Isso não é culpa do ator, afinal, Mark Eydelshteyn constrói o personagem com uma autenticidade que deixa claro o privilégio de quem nunca precisou pensar um minuto sequer nas consequências de seus atos antes de tomar qualquer ação. Mesmo assim, é essencial para o espectador acreditar que Ani está, de fato, entregue a esse romance improvável. Para isso funcionar, ainda que o diretor gaste vários minutos e até comprometa o ritmo da obra, a atuação sublime de Mikey Madison se destaca.
A atriz preenche a tela ao dar vida a uma mulher complexa. Ani é forte e determinada, e apesar de não vermos tanto sua vida pregressa, entendemos que ela é uma sobrevivente. Mas a jovem, como qualquer um, possui suas vulnerabilidades que a deixam suscetível ao brilho de promessas que parecem boas demais para ser verdade. Madison domina cada nuance, e seu desempenho é essencial para a conexão emocional do público com o filme. Baker complementa essa força com um visual igualmente vibrante, criando uma atmosfera que reflete o fascínio de Ani por essa nova vida, ao mesmo tempo em que sugere sutilmente o quão frágil essa ilusão pode ser.
O tempo vai passando até que a narrativa repentinamente toma um rumo completamente diferente, abandonando a leveza inicial e revelando sequências mais aceleradas e enervantes. Se você viu a descrição do filme como uma comédia, provavelmente as cenas com esse tom comecem a partir de agora. Contudo, ainda que o filme flerte com o humor nesses momentos caóticos — principalmente quando o segredo do relacionamento vem à tona para a família do agora marido da protagonista —, o desconforto prevalece. Ani é colocada em situações bizarras envolvendo sair com os capangas da família russa (um em especial desenvolve um cuidado inusitado com ela), encontrar Ivan e enfrentar os seus pais, e tudo o que vemos são gritarias e confusões no melhor estilo “Joias Brutas”.
Baker usa essas situações não para aliviar a tensão, mas para intensificá-la e, de quebra, expor o abismo entre as realidades dos dois personagens principais. Quando tudo desmorona, o peso recai desproporcionalmente sobre Ani, enquanto Ivan e sua família seguem praticamente ilesos. Baker não julga a protagonista (nem ninguém, na verdade) por buscar a felicidade por meio de um “contrato” de alto custo pessoal envolvendo sexo e poder. Porém, em um mundo onde o dinheiro exerce tanta influência sobre as relações humanas, essa diferença escancara como as estruturas sociais protegem os privilegiados e punem os mais vulneráveis.
Depois de todo o turbilhão de emoções, o clímax do filme ainda dá um último golpe impactante, fugindo de qualquer tentativa de romantizar ou suavizar a trajetória da protagonista. Baker deixa claro que, apesar das escolhas questionáveis para tentar melhorar de vida, Ani está sozinha para lidar com as consequências de uma sociedade que a julga por suas ambições enquanto ignora os erros dos mais poderosos. A falta de aprofundamento no passado da personagem demanda que o público complete certas lacunas para que a experiência seja completa. Ainda assim, vê-la se desprendendo de todas as armaduras que precisou usar a vida inteira para conseguir sobreviver é bastante impactante.
“Anora” não é um filme fácil de categorizar. Ele desafia as expectativas ao misturar gêneros e oferecer uma visão atual e sem enfeites sobre relações marcadas pela desigualdade. Ainda que o ritmo seja um ponto baixo a se considerar — talvez realizar a montagem do próprio filme tenha deixado Baker apegado demais pelas cenas —, a obra tem seus méritos ao abordar uma narrativa sobre o poder do dinheiro nas relações humanas e o quanto uma pessoa precisa se desgastar na busca por felicidade em um mundo desigual. A intenção do humor passa do ponto, mas o desconforto gerado faz até mais pela história do que os possíveis risos.
O post Crítica | Anora (2024): quando a ilusão desmorona apareceu primeiro em Cinema com Rapadura.
Qual a Sua Reação?